A beleza no caos

E somos a todo instante instados a perceber a beleza no caos, porque o cosmos, nosso mundo ideal, é apenas o que nos move. Em absoluto, aquilo que se nos apresenta.

Quem leu Memórias póstumas de Brás Cubas deve se lembrar da passagem – aliás muito frequentada pelos críticos e professores de Literatura – em que o narrador protagonista amofina-se com a condição de Eugênia, a jovem a um só tempo, bela e coxa. Como poderia a natureza ser capaz de produzir tamanho desequilíbrio, ou aquele “imenso escárnio”? Uma coisa é certa, não é preciso ter um espírito ímpio como o do senhor Cubas para que, pessoas comuns, formulemos pensamentos semelhantes. Por que é tão difícil admitir e administrar a dialética humana? Eis aqui um bom exercício para produzir mais e mais sinapses.

Quando a sagacidade é uma qualidade do aluno e dela forem companheiras a tagarelice, a algazarra, a indisciplina, por exemplo, lá está o professor e seu espanto à Brás Cubas: “Se inteligente por que bagunceiro?” … ou mesmo, se a situação fosse a oposta: “Se bagunceiro por que inteligente?” O fato é que viver seria mais tranquilo, se a vida, ela mesma, se apresentasse em situações mais planas e coerentes, num script previsível e morno. Entretanto, a vida, na maior parte das vezes, se mostra esfericamente complexa. E somos a todo instante instados a perceber a beleza no caos, porque o cosmos, nosso mundo ideal, é apenas o que nos move. Em absoluto, aquilo que se nos apresenta.

O lugar-comum de ser a preguiça a mãe de todos os vícios, como todo lugar-comum, é bastante questionável; porém a formulação tem lá o seu fundo de verdade. A preguiça – e creio que seja preciso adjetivá-la! – intelectiva nos imobiliza na paisagem, nos faz Adão e Eva, sem nenhum desejo pelo novo, pelo conhecimento, pela mordida na maçã. Tenho a nítida sensação de que, para boa parcela da humanidade, viver a tranquilidade dos paraísos contemporâneos é uma espécie de compensação. Troca-se a capacidade do questionamento pela inserção em cenários edênicos. É a família feliz no condomínio totalmente planejado para você, pessoa descolada, merecedora do melhor conforto, no melhor ponto da cidade.

Esse mundo plano e ideal que nos é vendido todos os dias, ou, para não ficar tão paternalista, esse mundo plano e ideal que compramos, por gosto e preguiça, todos os dias, tem a capacidade de nos subtrair o que nos particulariza, a nossa humanidade, aquilo que nos torna, enfim, humanos. Pascal nos disse que somos animais mais frágeis que um caniço ao vento, mas animais mais frágeis que um caniço ao vento, e pensantes, capazes de argumentar e buscar alternativas.

Parece então que o mundo adoece todos os dias quando nos frustramos entre a realidade do caos e a construção de realidade do cosmos; quando ficamos insensíveis, como nosso personagem machadiano, e tornamo-nos obtusos diante do complexo, que preferimos denominar paradoxo; quando, a cada frustração, nos culpamos e, pior, colocamos a culpa no outro; quando, óbvio, não nos comportamos como humanidade.

Talvez, por isso, as telenovelas, de um modo geral, façam tanto sucesso. Quanto mais planos e previsíveis os enredos, maior parece ser o seu sucesso. Projetam-se na tela as situações que não podem ser vividas no mundo aqui, de chão e realidade duros e deliciosamente bons de serem partilhados.

Professor de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II.

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6 comentários em “A beleza no caos
  1. Márcia de Assis disse:

    Quando eu crescer, quero escrever assim…
    É da beleza no caos que me alimento. Caso contrário, que outro meio de tornar forte o caniço ao vento?
    😉

  2. Mariana disse:

    Adorei o texto, parabéns!!! Antes de tudo, bem escrito. Traduz bem certas perplexidades que experimentamos ante o aspecto desorganizado e complexo da realidade. Haveria muito o que falar, mas quero me deter no episódio da Eugênia – lembro-me perfeitamente que sua análise rendeu-me a aprovação sem maiores problemas no curso de mestrado. É sem dúvida um dos mais cruéis da obra, e faz pensar sobre a questão de nossa humanidade, subtraída, como você diz, em nome de um mundo mais digerível e plano.

  3. Ana Kaminski disse:

    Ótimo texto, Arquimimo!
    Sim, é tão grande nossa perplexidade diante de certos paradoxos, ou mesmo dos mistérios da vida e do cosmos, quanto é imenso o número de dúvidas que, diaraimente, nos inquietam, desafiam ou atordoam!!! Felizmente, também há uma boa parcela de prazeres, o que nos impele a continuarmos a viagem , com paixão e curiosidade! Abraços alados azuis.

  4. Jandira Lúcia disse:

    Arquimimo, que texto bom de ser lido!
    Não fossem os paradoxos, onde encontraríamos o prazer e a sabedoria do viver. Você tem razão Machado é um aprendizado eterno.
    Não te conhecia escritor. Adorei!

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